Eu sei, não é novidade. Inclusivamente, aconteceu duas vezes este ano. Lemos as notícias, vimos as imagens na televisão e nos jornais, ouvimos relatos emocionados. Cada um, acredito, fez o que pôde para ajudar quem mais precisava. E aos poucos fomos esquecendo o que se passou. Mas só quando pomos os olhos na realidade é que nos "cai a ficha" do que realmente aconteceu. E este fim-de-semana, nesse sentido, foi muito duro.
Somos um povo tendencialmente solidário. "Quando arde Tábua, arde a minha casa", como disse Ricardo Araújo Pereira no espectáculo "Uma Conversa Sobre Assuntos", ao qual assistimos em Tábua. Aliás, foi exactamente esse espectáculo e essa solidariedade que nos levaram até ao centro de Portugal na sexta-feira à noite. Queríamos participar, queríamos presenciar este momento de altruísmo de um humorista que tanto admiramos e simultaneamente ajudar quem perdeu um pouco ou tudo do que tinha.
Como vos disse, saímos do escritório à pressa ao final da tarde de sexta-feira e fizemo-nos à estrada em direcção ao Pavilhão Multiusos de Tábua. A adesão ao espectáculo foi tão grande que foram obrigados a alterar para um espaço maior do que a sala inicialmente prevista e às 21h30 (chegámos poucos minutos antes) estávamos, juntamente com outras centenas de pessoas, ali para ajudar. Porque fazer rir também é ajudar, e acredito que aquela noite foi uma autêntica lufada de ar fresco para muitas pessoas.
À noite, pelas estradas, já era possível perceber que a devastação era muita, que as marcas estavam bem presentes e que o ar, passado mais de um mês, ainda cheirava a queimado. Mas só o amanhecer nos trouxe as imagens nuas e cruas do que aconteceu ao centro de Portugal.
Tínhamos planeado aproveitar o sábado para passear e conhecer ou recordar algumas das aldeias mais características do nosso país. Passei muitos verões naquela zona, em férias animadas com a família materna numa casa na zona de Oliveira do Hospital que o tempo nos levou. Tudo me traz muitas memórias de infância - Avô, chapinhar na Fraga da Pena, banhos na praia fluvial de Coja, o Piodão com um calor abrasador e a famosa ponte das três entradas que faz as delícias de qualquer criança. Juntámos a esse roteiro a Foz d'Égua e a Aldeia das Dez, novas descobertas para ambos.
Acordámos nas Casas Vale Martinho, rodeados de silêncio e de verde. Ouvimos falar, claro, de como o fogo esteve ali à porta e foi preciso combatê-lo (com sucesso, felizmente) com o que havia à mão. Depois, fizemo-nos novamente à estrada. E aí, com o claro do dia, doeu. Doeu ver tudo queimado, destruído, negro. Doeu o cheiro a queimado que nos entrava pelos pulmões naquela zona onde é habitual inspirarmos, com prazer, o ar puro. Não consigo - nem seria suficiente - retratar tudo em palavras. Há zonas onde os rails da estrada deformaram, onde o alcatrão derreteu. Aldeias onde as redes telefónicas só serão repostas em Fevereiro, na melhor das hipóteses. Entre Aldeia das Dez e o Piodão há dezenas e dezenas de quilómetros onde não se vê um único centímetro de verde, só negro. E depois, no meio, por milagre, uma casa impávida e serena, como se não tivesse passado por ali o maior incêndio de que haverá memória. Não queremos imaginar o que terá sido estar ali, a salvá-la. No Piodão, contam-nos que apenas não ardeu a aldeia inteira porque o vento foi amigo - estiveram cerca de um dia a ver as chamas enormes a lutarem contra o vento, que as impedia de baixar a encosta. O Piodão é, aliás, a única zona por onde passámos que se mantém verde.
Ao final do dia, quando regressávamos a casa, foi preciso abrir as janelas do carro em plena autoestrada: o cheiro intenso a queimado estava impregnado no interior do carro e também em nós. E as imagens, na nossa memória e no cartão SD da máquina fotográfica, não nos deixam esquecer o que vimos e como nos marcou.
Vamos, claro, mostrar-vos o bonito que vimos nesta viagem e as aldeias deliciosas que conhecemos. Até porque há imagens que são uma autêntica vaga de esperança e nos mostram que o nosso Portugal é, sempre, lindíssimo.
Vamos também continuar a fazer o possível para ajudar. E disse-nos um passarinho que em 2018 haverá mais espectáculos do Ricardo Araújo Pereira pelas zonas afectadas pelos incêndios - algumas zonas não puderam responder atempadamente ao convite para o receber, devido às falhas nas comunicações.