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A Morabeza de Cabo Verde


Conheci Cabo Verde em 2004, na altura em que uma câmara com 2MP era uma bomba tecnológica e a internet, por lá, era coisa muito rara. Viajei num contexto diferente, menos turístico e, talvez por isso, Cabo Verde me tenha tocado ainda mais fundo. 

Vou-vos enquadrar. A Escola em que o meu pai dava aulas - EB 2,3 António Sérgio, no Cacém - fez, durante longos meses, um intercâmbio com Cabo Verde, mais especificamente com uma escola na Ilha do Sal. Durante meses os alunos trocaram correspondência e informações, até que surgiu a possibilidade de visitar a ilha. Na altura, eu tinha 17 anos e fui convidada a acompanhar a "comitiva" que foi de Portugal.

Na recepção no aeroporto houve música, dança e muita alegria. Já dava para perceber o que iam ser aqueles dias pela Ilha, mas nada fazia prever o quanto íamos ficar marcados pela experiência. Se me perguntarem o que gostei, da aventura que foi, muito em parte tenho que vos responder que o que me fez realmente gostar foi conhecer Cabo Verde como um local, sem pacotes turísticos à mistura. Não houve hotéis, não houve tours organizadas, não houve negócios incluídos. Apenas professores locais, alunos locais e muita vontade de nos mostrar o que Cabo Verde tem para oferecer. Um orgulho enorme num país humilde e abençoado em beleza.
Voltei, mais tarde e mais adulta, à Ilha da Boa Vista num típico pacote turístico. Não gostei. Faltou-me a realidade, o contacto com as pessoas, o carinho dos cabo-verdianos. Com isto não digo que não recomendo a Boa Vista, atenção! O que vos recomendo é que conheçam Cabo Verde a sério, fora dos muros dos resorts turísticos que pouco têm a ver com a realidade. Há tanto mais para vos oferecer!


Já não me lembro, ao certo, quantos dias ficámos em Cabo Verde. Na altura soou-me a uma eternidade e diz, quem me conhece, que vim de lá mais atenta, mais solidária, mais contida. Tudo verdade! O contacto com a pobreza marca, faz-nos dar mais valor ao que temos em casa e acrescenta-nos a vontade de ajudar e fazer pelos outros. Mas os valores daquela gente ensinam-nos mais do que o dinheiro pode comprar.

Visitámos três ilhas, todas elas marcantes de formas distintas:

Ilha do Sal

Começámos a viagem na Ilha do Sal, em Santa Maria. Ficámos alojados em apartamentos de estudantes, em beliches e com casas de banho partilhadas. Na primeira noite, as crianças da zona faziam fila à porta do prédio, na esperança de que os estrangeiros lhes trouxessem algo. E trazíamos. T-shirts, canetas e outros brindes que foram retribuídos com alguns dos sorrisos mais bonitos que já vi. 
Do Sal conhecemos Santa Maria, mergulhámos infinitas vezes nas águas quentes azuis-turquesa e vimos as dezenas de pescadores que todos os dias saem da água carregados de peixe. Levaram-nos a visitar as salinas, o deserto e a autoestrada da ilha que tem, imagine-se, rotundas. Aprendemos a dançar kizomba, coladera e o esquema. Comi tanto bife de atum que eu, que adoro atum, o enjoei por muitos meses. Facilmente demos a volta à ilha, que na altura ainda não estava muito alterada pelo turismo. Lembro-me muito bem da Avenida principal de Santa Maria, da música que saía dos bares, dos djambés tocados aqui e ali. Lembro-me de Espargos, da esplanada onde apanhei o pior escaldão da minha vida, na rapidez de beber um copo de leite logo pela manhã. 
Há qualquer coisa nas pessoas, na sua simplicidade e simpatia que nos conquista. A isso chamam morabeza, uma palavra bem caboverdeana e que define a forma como nos recebem. Logo no primeiro dia, a morabeza marcou-me: as pessoas, ao perceberem-nos estrangeiros (não era difícil...), faziam questão de nos abordar na rua, de garantir que estávamos a gostar de conhecer a sua terra e que tínhamos as melhores dicas de sítios onde ir e restaurantes onde comer.







Ilha de São Vicente

Na altura, foi a ilha mais desenvolvida, das que visitámos. Nas ruas do Mindelo há lojas, restaurantes, prédios de vários andares e, imagine-se, a Casa do Benfica. Tomei todos os dias banho de água fria e vivi feliz, entre a Baía das Gatas (assim chamada devido à presença de tubarões gata; onde prometemos voltar, mais tarde, para o festival de música) e a Praia Grande, entre estradas complicadas e parques naturais com aranhas maiores do que a palma da minha mão (e se detesto aranhas...). 
Numa das noites, jantámos na casa da família de um dos Professores, na baía do Mindelo. A vista para toda a baía era impagável, mas o que nos conquistou foi a caldeirada de peixe e a música tradicional tocada ao vivo, só para nós. É a morabeza. Não falha!






Ilha de Santo Antão

Depois de conhecer a praia e a cidade, conhecemos a natureza de Cabo Verde. Santo Antão é conhecida como a ilha verde e mostrou-nos um Cabo Verde mais nu, mais cruel, ainda mais apaixonante. Em Santo Antão não há o desenvolvimento que encontrámos noutras ilhas e os sinais de pobreza, aqui e ali, são cada vez mais evidentes. Não há lojas, as famílias vivem do que é produzido e cultivado no local e as casas são as mais simples. Não me lembro, muito sinceramente, do alojamento em que ficámos. Mas lembro-me de percorrermos a ilha, como se fosse hoje. Lembro-me da cratera vulcânica, das praias de areia negra e rochosas, do mar azul-turquesa no contraste. Lembro-me das plantações de cana de açúcar, da produção do tradicional grogue em moinhos puxados por animais - os trapiches. E de estarmos à espera, na praia, de que o barco chegasse com o nosso almoço: peixe "melão". "Melão com espinhas", brincavam eles.






 




Se há viagem que não se esquece, esta viagem a Cabo Verde é uma delas. Será sempre. E sempre que me perguntarem, digo-vos que os cabo-verdianos são dos meus povos preferidos em todo o mundo. Afinal de contas, deve ser a única cultura em que existe uma palavra para descrever a forma como recebem - a morabeza.
E a morabeza marcou-me, para sempre! 

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